segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Cólera

Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustoso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo salvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo. Uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele farejar e sentir que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos. Aviso também que não se deve temer seu relinchar: A gente se engana e pensa que é a gente mesmo que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez.



Clarice Lispector

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